Apesar de ser uma tradição portuguesa, inspirada na tradição católica de visita dos três Reis Magos ao menino Jesus, as Folias de Reis chegaram ao Brasil no século XVIII e se popularizaram entre os habitantes de muitos estados (principalmente Minas Gerais, Goiás e São Paulo)... É, inclusive, patrimônio imaterial do estado de Minas Gerais.
Ontem, dia 06 de janeiro, foi "dia de Reis"... Desde criança, a minha ligação com as folias sempre foi muito grande... Para mim, elas representam uma das manifestações populares mais autênticas e expressivas que existem... O meu avô materno, Antônio, as apreciava e ouviu todas as suas variações até próximo do seu passamento... O meu pai até bem pouco tempo atrás, ficava ligado nos dias de apresentações delas, lá na nossa Franca, e me ligava: " filho, sábado tem apresentação das folias, lá na exposição... Você vem?" E, eu ia... E ficávamos horas no meio da festa (os meus olhos marejaram, agora).
Mas, o que me marcou mesmo sobre elas, foi na infância, no sítio da tia Geralda, lá em Ituverava, próximo ao povoado de Capivari da Mata, quando eu ia passar férias com a minha vó Zilda, a minha madrinha... Como sempre estávamos lá entre o Natal e o dia de Reis, era comum presenciar as apresentações das folias, no sítio dela...
Lugar bucólico, sem energia elétrica, iluminado por lamparinas à querosene, dormia-se muito cedo ("com as galinhas", segundo uma expressão muito usada na época)...Mas, nas madrugadas sempre vinham os foliões com as suas bandeiras, roupas coloridas, violas, sanfonas e pandeiros enfeitados com fitas... Lembro-me de acordar com uma música bem distante e olhar pela janela, na amplidão do pasto que rodeava a antiga casa, enxergando as luzinhas cintilantes dos candeeiros deles... O coração já acelerava... A música crescia na medida que se aproximavam e havia toda uma reverência para adentrar a casa... Sempre era oferecido cachaça para os foliões, dinheiro na forma de esmola para a igreja e um delicioso bolinho de polvilho, servido para todos, com café (não era o biscoito tradicional que conhecemos aqui em São Paulo, mas um bolinho sovado com erva doce e frito na hora, crocante por fora e muito macia no seu interior, uma das especialidades da minha família, para a "merenda").
Os foliões cantavam, dançavam e bebiam muita cachaça... E nós, da casa, ficávamos ali atônitos, extasiados, hipnotizados pelo colorido e pelas vozes agudas e bem afinadas... A reverência de oferecer a bandeira para a dona da casa, que a beijava e era consagrada por ela, tinha uma beleza ímpar.
Lembro-me que os palhaços sempre me assustavam e para amenizar os meus primos, bem mais velhos do que eu, Francisco, Maria das Graças e Antônio José, me diziam: "deixa disso, moleque, é o Acácio da tia Jerominha que tá vestido assim para zombar de ti..." Era nada, rsrs, o Acácio era bem mais alto e gordo que aquele marungo!!!!
Os foliões eram todos lavradores, vizinhos da tia Geralda (muitos até nossos parentes), que haviam trabalhado o dia todo na roça, na enxada, debaixo de sol e chuva, mas à noite se transformavam em seres divinos, que trocavam o seu cansaço pela alegria de louvar e encantar a todos nós... Era sublime...
Tem cenas que sei que nunca mais vou viver, até mesmo porque faltarão os seu protagonistas... Esta é uma delas... Felizmente, ainda está viva e bem forte na minha memória...
Sou um sujeito de sorte, em ter tido na vida, referências tão fortes como a vó Zilda e a tia Geralda... Hoje, através do meu estudo e do meu trabalho, posso contribuir para que estas tradições não sejam esquecidas... Saúdo e parabenizo o esforço de todos que sustentam a contragosto da globalização e da padronização dos costumes, as nossas mais tradicionais manifestações populares... E lembro, que a Folia de Reis não é exclusiva das pequenas vilas e áreas rurais... São Paulo e Guarulhos (sede afetiva da Via Franca Turismo) possuem diversas delas, bem ativas, como a Companhia de Santo Reis Estrela do Oriente da Vila Nhocuné (São Paulo), Companhia de Santo Reis do Bom Clima (de Mestre Macuco e Mestre Geraldo, de Guarulhos), a Companhia de Santo Reis Estrela Guia, de Vila Barros (Guarulhos) e a Companhia de Santo Reis Divina Luz, do Jardim Adriana (Guarulhos)...
Mesmo com um dia de atraso, desejo que os Reis Magos tragam a todos, muita esperança e prosperidade...
PS.: escolhi ilustrar a postagem com uma imagem minha, na companhia do genial Rolando Boldrin, que representa a resistência da nossa genuína cultura contra a massificação, imposta a todos nós, diariamente!!! Ubuntu, Sr. Brasil...
Texto de Evanir B. Penna (professor, guia de turismo e sócio proprietário da Via Franca Turismo)
(a linda composição "Cidade da Galileia" na voz do Capitão Tostão e demais membros da Folia de Reis Família Santos de Romaria, MG)